Como fazer calçadas ativas?
17/11/2015 | por cidadeativa
Entre os dias 25 e 28 de novembro acontecerá em São Paulo o Seminário Internacional Cidades a Pé. Pioneiro e inédito no Brasil, o evento tratará da mobilidade a pé e da humanização das cidades, através da ótica dos pedestres. Diversas exeperiências que promovem cidades mais caminháveis terão a chance de se encontrar e gerar novas idéias e inspirações. A Cidade Ativa irá ministrar no dia 25 uma oficina sobre calçadas ativas com um Safári Urbano no entorno do Instituto Tomie Ohtake.
Da Prancheta para a calçada: Safáris Urbanos
O Safári Urbano é uma metodologia de análise de calçadas baseada em estudo desenvolvido nos Estados Unidos, intitulado “Active Design: Shaping the Sidewalk Experience” (ou “Desenho ativo: moldando a experiência nas calçadas”, em tradução livre para o português). O trabalho, desenvolvido em Nova Iorque a partir da colaboração de diversos departamentos da prefeitura da cidade, como Secretaria de Planejamento, Construção, Saúde e Transporte, faz parte de uma coleção de estudos e pesquisas que buscam relacionar a forma urbana e o ambiente construído a aspectos da saúde.
De acordo com o conceito “active design”[1], estilo de vida e nível de atividade física são resultados diretos da forma dos edifícios e do planejamento das cidades. Assim, como parte do programa de prevenção de doenças ligadas a obesidade e sedentarismo, novas diretrizes de desenho, leis e projetos urbanos podem ser criados para fomentar estilos de vida mais ativos.
O estudo para a elaboração do “Active Design: Shaping the Sidewalk Experience” [2] foi viabilizado a partir de visitas a mais de trinta calçadas em seis cidades americanas em expedições chamadas “Safáris Urbanos”, que utilizaram metodologia desenvolvida especificamente para esta pesquisa. O método foi criado pela própria equipe durante o processo, sendo então testado e aprimorado ao longo de seu desenvolvimento.
Moldando a experiência do pedestre
Durante a elaboração do guia em Nova Iorque, gestores e técnicos frequentemente colocavam a pergunta: “Qual é, então, a calçada perfeita?” ou “O manual oferecerá ‘a resposta’ sobre como construir a melhor calçada?”. Como, em geral, dentro das disciplinas ligadas a engenharia de tráfego ou transporte o dimensionamento das infraestruturas são objetivos, como “uma via local deve ter X metros de largura”, ou “o distanciamento entre estações de metrô deve variar entre X e Y metros” muitas vezes espera-se o mesmo para o desenho das calçadas: uma ciência certa, objetiva.
No entanto, o caminhar, feito na escala e dentro da gama de sentidos dos pedestres, acaba por abarcar uma imensidão de condicionantes que geram diversas soluções de desenhos. Dada a variedade de contextos em que podem estar inseridas as calçadas (a cidade, seu clima, o uso do entorno, ou mesmo o horário do dia), somadas a diferenças culturais e a individualidade dos pedestres (suas capacidades e motivações pessoais), pode-se chegar a várias respostas, para as experiências que se deseja criar.
O estudo coloca então a seguinte equação: a experiência do pedestre ao caminhar por uma calçada é modelada por um espaço físico, composto de diversos elementos, que, por sua vez, são regulamentados por políticas. Estes três aspectos – “experiência”, “espaço físico” e “políticas” – são aprofundados ao longo do trabalho.
Entende-se que as “experiências” possíveis em uma calçada podem ser inúmeras – pode-se configurar um espaço tranquilo e seguro, de uso intenso, extremamente ordenado ou flexível e dinâmico – e que, portanto, não existe uma “fórmula” capaz de resolver todas as situações possíveis. O que se faz necessário, no entanto, é garantir que esta calçada aborde os seguintes quesitos, ainda que através de estratégias distintas, essenciais para ativar estes espaços e incentivar a caminhada:
+ Conectividade
Para uma calçada acessível, ela deve ser bem conectada com o restante da cidade. O seu uso pode ser incentivado, se localizada próxima às estações de metrô, paradas de ônibus, equipamentos urbanos (hospitais, escolas, parques). Além da sinalização para pedestres, indicando caminhos e principais destinos do entorno, e a conexão com ciclovias.
+ Acessibilidade
Esta estratégia é essencial para que uma calçada possa ser utilizada por diversos tipos de usuários (de diferentes idades e com capacidades diversas para locomoção, visão e audição). Em outras palavras, que ela seja confortável e de fácil acesso para qualquer pessoa.
+ Segurança
A sensação de segurança é outro fator que garante o uso das calçadas. A questão da iluminação está diretamente relacionada a esta estratégia, mas a presença de outras pessoas também é importante para o seu uso. Portanto, mistura dos usos do solo, visibilidade entre escadaria e espaços privados, densidade populacional, limpeza e conservação dos espaços e edificações, são elementos que criam esta sensação de segurança.
+ Diversidade
A versatilidade de uma calçada atrai diferentes usuários, que podem somente passear e descansar, usar espaços de uso múltiplos e para encontros, além de estimular atividades complementares que ativam o espaço ao longo das 24 horas do dia, durante diversas épocas do ano.
+ Escala Humana/complexidade
Quando as calçadas são atrativas, interessantes, desenvolvidas na escala da percepção sensorial do pedestre, o seu uso é incentivado. Os elementos presentes podem ser atrativos e promover experiências inusitadas, ou seja, o design e a disposição do mobiliário urbano podem ser significativos para que a calçada seja um ponto de encontro, conversa e descanso, por exemplo. Além disso, o uso de materiais diversos dão caráter espacial e identidade ao espaço.
+ Sustentabilidade/resiliência
Os espaços devem ser projetados para responder às mudanças climáticas e a ideia de cidades mais sustentáveis e eficientes. Dessa forma, estratégias para gestão de água, energia, resíduos, aliviando as consequências de enchentes, das ilhas de calor e na redução da emissão de poluentes e o do consumo insustentável de recursos.
Sidewalk Room: o espaço da calçada
Para a compreensão do que seria essa experiência do pedestre em uma calçada, a metodologia propõe um novo ponto de vista: os desenhos técnicos que convencionalmente representam o espaço da via – as plantas e seções – são complementados por uma perspectiva centrada no ponto de fuga do transeunte. Este espaço criado na calçada, chamado de “sidewalk room”, é conformado por quarto planos, que reúnem elementos distintos: o plano do piso, da via, da cobertura e do edifício.
Ainda que hajam sobreposições, cada um deles é composto por elementos que os qualificam:
+plano do piso
Omais conhecido do planos é caracterizado primordialmente por sua largura, inclinação e qualidade da pavimentação, também é impactado por infraestrutura urbana (tampas e caixas de inspeção de água, luz, esgoto, telefonia, etc), canteiros de jardins, posicionamento de mobiliário urbano como bancos e postes e largura e frequência das guias rebaixadas de acesso a veículos;
+plano da via
Composto em um primeiro plano por mobiliário presente na “faixa de serviço” como postes de luz e placas, além de arborização, bancos, paradas de ônibus, e inclui também tudo aquilo que acontece para além do meio-fio, como os usos da faixa adjacente (ciclovias, áreas de estacionamento, faixa exclusiva de ônibus);
+plano da cobertura
Formado por troncos e folhagens de árvores, postes e placas, iluminação, também pode ser caracterizado pela presença de marquises, toldos, andares superiores dos edifícios e, aqui no Brasil, por toda a fiação elétrica aérea;
+ plano do edifício
Pouco contemplado em projetos para calçadas, este plano abrange tudo o que acontece na faixa de acesso e nos lotes privados adjacentes à calçada. Aqui, exercem grande influencia os usos e dimensões dos lotes, assim como as características arquitetônicas das edificações, seus acessos, a transparência e os materiais utilizados em sua fachada. Quando afastados do alinhamento, os usos dos recuos desempenham papel fundamental na sensação de segurança de quem caminha.
Assumidamente um catálogo de referências, de “modos de fazer”, mais do que um manual que oferece “a resposta correta”, o guia compila exemplos de leis e diretrizes de desenho que orientam, exigem, permitem ou incentivam os diferentes elementos que compõem os quatro planos da calçada. Parte-se do pressuposto de que a calçada é um território complexo, em que conflitos entre entes públicos privados devem ser mediados. Assim, foi necessário identificar quais departamentos dos municípios são os que frequentemente regulam os diferentes componentes das calçadas.
Safáris Urbanos no Brasil
A metodologia original foi testada e aprimorada durante o período de desenvolvimento do trabalho pela equipe em Nova Iorque e depois traduzida e adaptada pela Cidade Ativa aqui no Brasil. O material é composto por fichas que orientam a elaboração das perspectivas, de desenhos técnicos para obtenção de medidas e quantificações e que indicam a coleta de parâmetros obtidos em campo e facilitam a compreensão – e comparação – dos elementos que caracterizam as calçadas avaliadas. Ao final do Safári Urbano, a calçada é avaliada qualitativamente pelos pesquisadores, o que permite comparar estudos de caso e identificar oportunidades e desafios para projetos de calçadas.
A partir desta leitura, o levantamento de leis que incidem no espaço construído da calçada pode auxiliar na identificação de eventuais empecilhos que dificultam a consolidação de calçadas mais ativas. Além disso, indiretamente são apontados os agentes responsáveis pela elaboração destas legislações e diretrizes específicas, o que pode contribuir para que esforços sejam compatibilizados.
Apesar da discussão sobre calçadas em cidades brasileiras estar – ainda – girando em torno de quesitos essenciais para a acessibilidade (como exigir e garantir a presença de calçadas, o rebaixamento de guias em cruzamentos, a implantação de pavimentos homogêneos e contínuos que permitam fluxo de transeuntes, entre outros), sabe-se que a complexidade dete território é similar a de cidades em outros países do mundo. Em muitos casos, proprietários são responsáveis por sua manutenção, enquanto departamentos de transito e transporte, áreas verdes, departamentos de serviços e concessionárias influenciam diretamente na sua configuração. Sem um responsável por coordenar as diferentes atuações dos agentes nestes espaços, a regularidade e continuidade da calçada é fragilizada.
A partir do momento em que o direito básico de acesso a estes espaços seja obtido com a implementação de infraestrutura mínima e a compatibilização dos projetos dos diferentes atores, um passo importante para incentivar a mobilidade a pé como forma de deslocamento nas grandes cidades será adotar um novo modelo de planejamento de bairros e qualificar os passeios existentes, etapa em que se encontram agora muitas das cidades norte-americanas. Assim, as oportunidades e desafios para esta transformação podem ser identificadas a partir de estratégias similares às exploradas em Nova Iorque e a elaboração de guias de desenho no Brasil podem reunir experiências que subsidiem futuros projetos e alinhar as ações dos diferentes atores responsáveis por estes espaços.
[1] NEW YORK CITY. Active Design Guidelines: Promoting Physical Activity and Health in Design. Nova Iorque: NYC, 2010.
[2] NEW YORK CITY. Active Design Guidelines: Shaping the Sidewalk Experience. Nova Iorque: NYC, 2013.
*Texto originalmente publicado no blog Cidade Ativa do Portal Mobilize.