A Cidade do Sim – Um manifesto por cidades acolhedoras

07/10/2021 | por cidadeativa

Um manifesto por cidades acolhedoras

Quem é mãe e pai (ou  tia, tio, avó, avô, irmã,  familiar, cuidadora) , sabe: os primeiros passinhos  dos bebês representam uma grande vitória.  Definitivamente para a criança, mas também para todas as pessoas envolvidas no seu cuidado.  A partir desse momento, um mundo de possibilidades se abre. Inspiramos profundamente, sentindo entusiasmo, gratidão… e já na expiração sai um ar demorado, que mistura uma sensação de desconforto, ansiedade… E um pouco de medo. 

Ao mesmo tempo em que nós, adultos e crianças, ganhamos confiança e algo de autonomia, percebemos que o ambiente ao nosso redor é menos amigável do que podíamos lembrar. Havíamos esquecido que as tomadas estão ali, a trinta centímetros do chão; que as quinas das mesas são pontiagudas; que as gavetas e armários estão cheios de objetos pontiagudos. E agora? Recebemos várias dicas de pediatras e de outras famílias sobre como adaptar nossas casas para nossos pequenos exploradores. Mas, ao sair pela porta, reparamos também que as calçadas são estreitas e esburacadas, que faltam faixas de pedestres, que as ruas são mal iluminadas, que a velocidade dos carros  é altíssima comparada com a velocidade dos passinhos das nossas crianças. Então, quem fica responsável por “adaptar” todos os outros lugares que queremos desbravar,  quem cuida das nossas cidades para que elas possam acolher os novos movimentos das crianças?  A responsabilidade do cuidado passa a ganhar um território muito maior a cada passo que a criança dá.

É comum que as crianças escutem: 

  • Não pode sair na rua sozinha!
  • Não corre! Não senta! Não encosta!
  • Não pode atravessar sozinho, tem que dar a mão!
  • Não mexa aí, é sujo!
  • Não, sai já daí, é perigoso!

Não, não, não…Para as famílias, sair de casa é um enorme desafio: a curiosidade dos pequenos é inversamente proporcional ao sentimento de segurança de suas cuidadoras e cuidadores, o que gera uma enorme frustração para ambas partes. Se, por um lado, queremos apoiar as descobertas, incentivar esse movimento em direção a maior autonomia e independência das crianças pequenas, por outro lado nos sentimos impotentes, defraudadas. Conscientes ou não, vamos registrando o meio urbano como um espaço antinatural para as crianças, com tantas limitações que impomos – ou que, na realidade,  nos são impostas. 

Como mães, pais e cuidadores estamos acostumados a medir, avaliar e gerenciar riscos, ponderando quando vale a pena arriscar um “sim”, deixando a criança escalar uma pedra, andar em uma mureta, subir em uma árvore. Mas e quando não temos opção, e quando quase tudo o que vemos lá fora são ameaças para a saúde e bem estar de nossas crianças? É justo que sejamos nós os responsáveis por assumir o risco de uma criança ser atropelada, ou que ela fique doente por brincar em uma rua com lixo ou esgoto a céu aberto? Por que nossas cidades não podem ser mais seguras, saudáveis, confortáveis para as crianças, jovens e famílias? Por que elas não podes ser lugares onde podemos dizer, com confiança, mais “sim” do que “não”?

Crédito: Cidade Ativa

Para nós, essas perguntas inquietantes nos fazem perceber que planejar e construir cidades para o “sim” significa mudar o ponto de vista das nossas tomadas de decisão para acolher bebês, crianças pequenas, adolescentes, jovens, mas também todo o círculo social, de pessoas e de relacionamentos, envolvidos no cuidado dessas crianças. Se queremos criar nossas filhas, sobrinhas e netas a partir de um olhar mais positivo, nossas cidades devem acolher essa perspectiva.

E isso significa planejar para e com uma diversidade enorme de pessoas, de circunstâncias. A criança recém-nascida tem necessidades distintas da criança de 3 ou 6 anos. É pensar na criança de colo e no direito que a mãe tem à amamentação. É perceber que para uma criança de um ano e meio, que está aprendendo a andar, cada pequeno buraco na calçada, cada degrau, pode ser um desafio. E reconhecer que para as crianças maiores cada passo revela a conquista de sua independência e autonomia – e uma conexão com a forma como irão viver a cidade quando adultas. 

Assim, pensar a cidade e seus espaços a partir da perspectiva do “sim” é algo que diz respeito a todas as pessoas. É ter como centro das decisões de projeto e investimentos na cidade a família, em suas mais diversas composições. A oportunidade que está posta agora, com tantas entidades defendendo a inclusão dessa perspectiva no planejamento urbano, é de escancarar os argumentos necessários para justificar a urgência dessa cidade para crianças e para todos – e agir. Se é preciso uma aldeia para educar uma criança, também é preciso um esforço coletivo, de diversos atores, para transformar nossas cidades em lugares que nos digam “sim”.

E a “Cidade do Sim” deve ser uma cidade:

  • SEGURA, porque nela “sim!”, as crianças podem ir a pé sozinhas para a escola, elas podem cruzar a rua com segurança. As crianças e jovens devem ter garantido o direito à vida, nenhuma pessoa deve morrer ou sentir medo nas ruas. É importante que tanto crianças quanto adultos se sintam seguros nos espaços públicos, esse sentimento é a base para a tomada de decisão sobre sair ou não de casa;
  • ACESSÍVEL, porque “sim!”, todas as crianças e pessoas são bem vindas nessa cidade. As crianças e suas famílias devem ter direito de acesso à cidade, e é através das ruas que se dá o acesso aos serviços de saúde, educação, cultura. A “Cidade do Sim” permite que cuidadores caminhem confortavelmente com seus filhos na calçada, e que possam subir em um ônibus com um carrinho de bebê, por exemplo;
  • SAUDÁVEL, porque “sim!”, as crianças podem respirar ar limpo lá fora! A “Cidade do Sim” inspira hábitos ativos e garante qualidade de vida a toda a população. Ela permite que as crianças escolham caminhar ou pedalar para ir a escola, ou que tenham um parque ou praça perto de casa onde possam brincar;
  • LÚDICA, porque “sim!”, nela as crianças (e adultos!) podem mexer, encostar, pegar, sentar, subir, pular…A forma da criança interagir com o mundo, e com as pessoas ao seu redor, é brincando. A cidade pode ser um enorme parque de diversões que estimula o desenvolvimento motor, cognitivo e socioemocional das crianças, oferecendo elementos lúdicos, com diferentes formatos de uso e interações.  A “Cidade do Sim”, ao invés de proibir, instiga descobertas e conexões com o ambiente urbano, e entre as pessoas.
  • INSPIRADORA, porque “sim!”, ela tem muito a nos ensinar. Por um lado, as crianças pequenas estão em pleno desenvolvimento de seus sentidos, desenvolvimento cognitivo, motor, e os espaços públicos precisam apoiar esse processo, incentivar descobertas e apoiar a sua autonomia. Por outro, as crianças maiores, com apoio de educadores e famílias, podem usar a cidade como currículo, como local de aprendizagem sobre diversos temas e disciplinas;
  • RESILIENTE, porque ela garante que “sim!” há futuro. Ela oferece espaços e serviços que protegem crianças e famílias enquanto respondem a catástrofes e crises. Ao mesmo tempo, ela incorpora estratégias que garantam um ambiente urbano mais ambiental, social e economicamente sustentável;
  • INCLUSIVA, porque a “Cidade do Sim” acolhe todas as pessoas. As crianças estão aprendendo a ler a cidade, a ler a sociedade, seus hábitos, seus costumes, para então repeti-los. É o início da construção do sentido de coletivo, de pertencimento. A introdução do conceito de diversidade e inclusão deve começar na primeira infância e ser fortalecida ao longo da vida, especialmente através da experiência nas ruas e espaços públicos.

Mas para alcançar a “Cidade do Sim”, devemos repensar o processo de planejamento urbano em si. É importante ressaltar que a perspectiva da criança e das famílias não é apenas uma camada nova de elementos que somamos na cidade existente: é o próprio caminho pelo qual deveríamos repensá-las. É preciso olhar para políticas e projetos públicos de forma abrangente e entender onde e como essa perspectiva deve ser incluída, seja no marco regulatório; nos métodos e sistemas de coletas e monitoramento de dados; na forma como os serviços públicos são oferecidos às famílias; nas práticas de planejamento e projeto de espaços da cidade; nos modelos de governança; e no processos participativos.

Mais do que nunca, queremos reforçar nosso compromisso em construir “cidades do sim”. Nosso manifesto nasce em um momento crítico, em que o “não” ficou mais evidente, onde tanto crianças quanto adultos estão sendo privados de estar lá fora, usando espaços comuns – ou tocando, descobrindo, nos aproximando, abraçando…onde as vulnerabilidades foram escancaradas. Por isso, a “Cidade do Sim” se torna ainda mais urgente. Queremos colocar energia em observar, escutar, pesquisar, dialogar, planejar e compartilhar aprendizados que apoiem políticas e projetos para cidades mais acolhedoras. Acreditamos que o cuidado com as crianças, e com nossas cidades, deve ser socializado – e que temos, todas nós, este dever. Vamos juntas construir “sim´s”?

Por Cidade Ativa

Assinam também este manifesto:

  • Aliança da Misericórdia
  • ape – estudos em mobilidade
  • Associação Bem Comum
  • Ateliê Navio
  • CalçadaSP
  • Caminha Rio
  • Caraminhola
  • Carona a Pé
  • Casacadabra
  • Cidadeapé
  • CoCriança
  • Coletivo Popular Direito à Cidade – Porto Velho – RO
  • Como Anda
  • Compasso Mobilidade
  • Côncavo Arquitetura
  • Corrida Amiga
  • Curucutu Parques Ambientais – OSCIP
  • Erê Lab e Coop-Erê
  • Flecha Arquitetas
  • Fórum de Mobilidade Urbana – RJ
  • Grupo de Estudos e Pesquisas Epidemiológicas em Atividade Física e Saúde da Universidade de São Paulo (GEPAF-USP)
  • IAB-SP / GT Cidade Infâncias e Juventudes
  • INCITI
  • Instituto A Cidade Precisa de Você 
  • Instituto Biomob Observatório da Diversidade e Inclusão
  • Instituto Brasiliana
  • Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP Brasil)
  • IVM – Instituto Cidade em Movimento
  • Laboratório de Pesquisas em Exercício Físico e Doenças Crônicas da UNESP
  • Laboratório de Vida Ativa
  • Metrópole 1:1
  • Mobicicleta – Coletivo de Ciclomobilidade de Ribeirão Preto
  • Movimento BH pela Infância
  • Pé de Igualdade
  • Portal Mobilize
  • Pro Coletivo
  • Programa Criança e Natureza – Instituto Alana
  • Programa de Desenvolvimento Humano pelo Esporte
  • Projeto Meio-fio
  • Rede Brasileira Infância e Consumo – Rebrinc
  • Rio desde o início
  • SampaPé!
  • SEASE – Associação dos Engenheiros e Arquitetos de Sapucaia do Sul e Esteio
  • Ser Criança é Natural
  • Sociedade Brasileira de Atividade Física e Saúde
  • SOS Cerrado
  • Sustentarqui
  • WRI Brasil
  • Somam nesse grande esforço coletivo, ainda: Abimadabe Vieira; Adriano Meiken Morelli; Adriel Luiz Meira de Aguiar; Alana Aragão; Aline Cannataro de Figueiredo; Ana Lúcia Lelis Duarte Zanetti; Ana Luiza Aureliano Silva; Bruna Donegá Alves; Cassiano Ricardo Rech; Cristina Catunda; Daniela Felizardo Lugato; Dannylo Rodrigues; Diego Lemos de Resende; Eleonora Figueiredo de Souza; Elisa; Fernando Ken Otsuka; Flavio de Figueiredo Moreira; Franklin Roberto Ferreira de Paula; Gabriela Noblat; Gabriela Vuolo; Geise Brizotti Pasquotto; Graziela Marchezini Cunha; Guilherme Stefano Goulardins; Igor Pessoa; Iza Cristina de Vasconcelos Martins; Jana Miranda Mendes Lopes; João Martins; José Osvaldo Ferreira Martins; Joseane Ludwig; Laura França Lelis Bezerra; Laura; Marcia de Oliveira; Marcos Vinícius Pereira; Mariana Oliveira da Silveira; Marina Machado Brandão; Monize; Monaliza Izidorio Pinheiro; Naomi de Paula Scheer; Paloma Ferreira Martins; Patrícia Nelly Alves Meira Menezes; Paulo Fernando de Moura Barros Filho; Paulo Rogerio Antônio; Regina Helena Viola dos Santos; Renata; Sérgio Urbaneja; Stella mesquita; Thais Certain; Thiago Benicchio; Yara Cristina Savaglia Anversa; William Serrano Smethurst.

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