Mobilidade urbana e clima: Percepções coletivas a partir da COP30
dezembro 17, 2025 | por cidadeativa
A relação entre mobilidade urbana e clima é direta e incontornável: o setor de transportes é um dos maiores responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa no Brasil e no mundo. Ao mesmo tempo, é também um dos campos de maior potencial para soluções de mitigação e adaptação, especialmente quando promovemos infraestruturas e serviços que apoiem o caminhar, o pedalar e o uso do transporte público.
A COP30 marcou um fortalecimento da agenda urbana no debate climático global, com maior visibilidade para temas como calor extremo, desigualdades socioespaciais e o papel das cidades na adaptação. No entanto, a ausência de compromissos globais mais ambiciosos acabou restringindo o aprofundamento de soluções estruturais para o setor de mobilidade e transportes. Nesse cenário, a mobilidade ativa aparece menos como uma prioridade explícita e mais como uma solução implícita para o avanço das agendas de mitigação e adaptação climática.
Nesse cenário, a presença na COP30 de organizações que trabalham com o tema representa uma oportunidade coletiva: registrar como esse tema apareceu (ou não) nas discussões, compreender as lacunas e fortalecer o chamado para que a mobilidade ativa e transporte público deixe de ser pauta secundária e passe a ocupar o centro da ação climática. Ao reunir essas vozes diversas, buscamos construir uma narrativa comum que evidencie conquistas, lacunas e caminhos possíveis para que a mobilidade ativa seja considerada como pilar central da ação climática.
A sociedade civil carrega para esses espaços de discussão as urgências que nascem no chão das cidades. Quando o clima muda o caminho, a cidade também precisa mudar. Precisamos seguir fortalecendo a adaptação urbana e construindo soluções que tornem as cidades mais caminháveis, cicláveis e com transporte público acessível — porque é no deslocamento cotidiano que a crise climática se escancara, e também onde podem nascer soluções de impacto.
Mariana Wandarti Clemente – Coordenadora na Cidade Ativa
Nas discussões acompanhadas pelas organizações, a mobilidade ativa apareceu de forma tangencial, muitas vezes de modo indireto em painéis voltados especialmente à resiliência urbana. O foco predominante do tema de mobilidade esteve na transição para eletromobilidade e, pela primeira vez, os dois pavilhões (verde e azul) dedicaram áreas específicas ao tema transporte. O transporte coletivo foi reiteradamente citado como prioridade para financiamento, mas ainda sem conexão explícita com estratégias de uso de bicicletas, caminhabilidade ou redes integradas. Também chamou atenção a ausência das grandes plataformas de transporte de passageiros por aplicativo, como Uber e 99 — que hoje absorvem parte significativa da demanda que migra dos modos ativos e do transporte público por falta de segurança, qualidade e por custo — e contribuem significativamente com o aumento de emissões no meio urbano.
Apesar desse cenário, há sinais positivos e desafios claros. Mais de 80 países se posicionaram pela eliminação dos combustíveis fósseis, o que abre espaço para uma agenda mais ambiciosa em 2026, quando o Brasil seguirá presidindo a conferência.
“Esse contexto reforça a urgência de inserir a mobilidade urbana sustentável — incluindo modos ativos — como peça-chave para atingir metas climáticas e proteger populações vulnerabilizadas diante de eventos extremos que já impactam deslocamentos cotidianos, com financiamento e ações concretas.“
Clarisse Cunha Linke – Diretora-executiva no ITDP Brasil.
As vivências no território mostraram claramente o distanciamento entre objetivo central da COP 30 e as necessidades das comunidades . Circular diariamente a pé ou de bicicleta durante os dias do evento em Belém revelou um enorme potencial, mas também expôs a carência de infraestrutura básica da cidade e do próprio evento — bicicletários e calçadas acessíveis ainda não estavam concluídas no início do evento — e a desconexão entre a prática cotidiana e as decisões oficiais. Embora a bicicleta seja amplamente reconhecida como solução de baixo impacto e inclusiva para a redução de emissões, essa promessa não se traduziu em ações locais, desperdiçando o potencial de fazer de Belém um laboratório vivo de estratégias de mobilidade sustentável. Ainda assim, a energia dos ativistas e das iniciativas comunitárias destacou a força das soluções construídas a partir da base, mostrando que a mudança real depende da ação local.
“O caminho é apostar nas soluções que já existem nos territórios: fortalecer trajetórias cicláveis, valorizar saberes comunitários e construir políticas que vejam a bicicleta como ferramenta de adaptação, saúde e equidade. A experiência mostrou que a transformação não vem só de tecnologia ou discursos — ela acontece quando juntamos participação popular, cultura, educação, economia local e mobilidade cidadã. É assim que cidades mais justas, resilientes e vivas se constroem.”
Murilo Casagrande – Diretor de Desenvolvimento Institucional do Aromeiazero.
Diante de debates que reduziram a mobilidade ativa e o transporte público a temas transversais, as organizações que elaboraram esse texto realizaram painéis que abordaram desde mobilidade urbana como estratégia para o enfrentamento da crise climática, os desafios da falta de dados e informações desagregadas, que dificultam políticas públicas mais precisas, e destacaram as oportunidades de incorporar infraestrutura urbana que incentive o uso de modos de transporte coletivos e não motorizados para adaptar as cidades e seus sistemas viários às mudanças climáticas, com segurança, conforto e acessibilidade.
Se, por um lado, a mobilidade ativa ainda enfrenta barreiras institucionais, por outro, a conferência também revelou compromissos e iniciativas que podem abrir novos caminhos para sua integração como estratégia climática. Entre os avanços observados (1), destacam-se:
- Reconhecimento do papel central das cidades na ação climática: 80% das NDCs já mencionando atores subnacionais.
- Anúncio da Presidência da COP: Mapa do Caminho para a Transição dos Combustíveis Fósseis de maneira justa, ordenada e equitativa e o Mapa do Caminho para interromper e reverter o desmatamento.
- Plano de Aceleração de Soluções de Governança Multinível: lançado pelo Governo Federal para acelerar a ação climática em todos os níveis de governo (local, regional e nacional), sendo a mobilidade ativa um aspecto estrutural para mudanças a nível local.
- CHAMP (Coalizão para Parcerias Multiníveis de Alta Ambição): reúne 77 países e a União Europeia para fortalecer a cooperação entre governos nacionais e locais na ação climática. O Brasil e a Alemanha foram anunciados como copresidentes, iniciando a fase de implementação global com foco em cidades, e incluindo ações voltadas à mobilidade ativa e sustentável.
- Beat the Heat: iniciativa da Presidência da COP30 e da Cool Coalition do Pnuma, com 185 cidades e 83 organizações, que busca enfrentar o calor extremo com soluções locais apoiadas por governos nacionais. Essa iniciativa é mais uma oportunidade de inclusão da mobilidade ativa e sustentável nas discussões e implementação a nível local.
- Compromisso assinado por Chile, Brasil e outros 9 países com a descarbonização do transporte: com meta setorial de 25% de redução do consumo de energia dos transportes até 2030, com um terço dessa energia vindo de fontes renováveis e sustentáveis. O documento destaca a centralidade do transporte público e da mobilidade ativa para viabilizar o cumprimento da meta.
- Lançamento da Trilha Amazônia Atlântica: cerca de 500 km conectando 16 cidades com foco em mobilidade, turismo comunitário e educação ambiental.
- Carta de Belém: inclusão de indicadores de adaptação e de referências a povos originários.
Projeções recentes indicam que alcançar a meta de emissões líquidas zero até 2050 depende não apenas da adoção de 35% de combustíveis verdes no setor de transportes, mas também da redução de 25% no consumo de energia do setor até 2035 (2). Isso significa transportar mais pessoas com menos energia — o que depende diretamente de cidades mais compactas, conectadas e caminháveis, com infraestrutura e políticas que valorizem deslocamentos a pé, de bicicleta e por transporte coletivo. Com esses aspectos em consideração, as estratégias convergem em três direções:
- Escalar soluções locais com investimentos estruturantes em calçadas acessíveis, travessias seguras, redes cicloviárias conectadas e políticas que incentivem tanto bicicletas convencionais quanto elétricas.
- Reposicionar a mobilidade urbana como estratégia climática prioritária, incorporada aos compromissos nacionais e locais, planos de adaptação, metas de emissões e mecanismos de financiamento.
- Fortalecer redes, evidências e governança multissetorial, conectando sociedade civil, comunidades, universidades, cidades e governos nacionais na construção de evidências e agendas comuns.
As contribuições das organizações revelam um diagnóstico comum: a mobilidade ativa é reconhecida como elemento fundamental da adaptação climática, da justiça urbana e da saúde das cidades, mas ainda ocupa um espaço distante nas negociações e compromissos climáticos globais. Apesar de avanços importantes — como o fortalecimento das agendas de adaptação, o reconhecimento do papel das cidades e o surgimento de iniciativas multilaterais com potencial de impacto — persistem lacunas estruturais: falta de metas específicas, ausência de financiamento dedicado, baixa integração entre políticas urbanas e climáticas e escassez de dados que sustentem ações robustas.
Diante desse cenário, o papel das organizações brasileiras que atuam com mobilidade urbana se torna ainda mais central. Elas ocupam um lugar singular ao combinar atuação territorial, produção de conhecimento, incidência política e construção de redes que conectam governos, sociedade civil, academia e comunidades. Essa articulação tem mostrado que caminhar, pedalar e acessar o transporte público não são apenas formas de deslocamento — são estratégias de mitigação, adaptação e equidade que precisam estar no coração da ação climática.
Por isso, este documento é também um chamado coletivo: para que a mobilidade ativa deixe de ser tratada como tema complementar e passe a ocupar seu lugar devido na agenda climática brasileira e internacional. E, sobretudo, um compromisso compartilhado entre as organizações que participaram desta construção de seguir produzindo evidências, fortalecendo alianças, ampliando a participação e articulando projetos e políticas que façam da mobilidade ativa um eixo estruturante das cidades e da ação climática no país.
Referências:
(1) Parte dos avanços citados são referenciados em: WRI BRASIL. COP30 impulsiona esforços para unir governos locais, regionais e nacionais em prol da ação climática. WRI Brasil. Disponível em: https://www.wribrasil.org.br/imprensa/cop30-esforcos-unir-governos-locais-regionais-nacionais-acao-climatica
(2) WORLD RESOURCES INSTITUTE (WRI). Completing the trip: establishing a global quantified climate goal for the transport sector. World Resources Institute. Disponível em: https://www.wri.org/research/completing-trip-establishing-global-quantified-climate-goal-transport-sector
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