MANIFESTO: Queremos respirar no “novo agora”

18/06/2020 | por cidadeativa

Nas grandes e médias cidades brasileiras, como em várias em todo o mundo, estamos respirando um ar mais limpo durante o período de pandemia, como efeito indireto da redução da circulação de veículos motorizados e das atividades industriais, em especial. Estudos já mostram que a crise do coronavírus reduziu a poluição do ar na China e na Europa, onde quarentenas foram impostas. No entanto, dados da China mostram que os  níveis de poluição têm aumentado à medida que as pessoas retomam suas atividades econômicas regulares[1]. Nesse cenário, é evidente a importância de medidas intersetoriais de incentivo e transição para uma economia e mobilidade mais sustentável, eficiente e resiliente.

Vale destacar que, neste período, a temática da qualidade do ar não adquiriu destaque apenas pelos importantes efeitos observados durante o distanciamento social e com a redução da atividade  industrial, como também por pesquisas recentes correlacionarem a poluição atmosférica como um fator possível de propagação do novo coronavírus, do agravamento da doença COVID-19 e de sua letalidade. Em relação a isso já foram levantadas ao menos três hipóteses: 1) o poluente particulado fino (MP2,5 ou ultrafinos) permite transportar o vírus em sua superfície, facilitando sua entrada para dentro dos pulmões e sua disseminação em maiores distâncias[2]; 2) a exposição da população em locais mais poluídos no curto prazo foi associada ao aumento do número diário de novos casos[3]; 3) populações que sofreram mais exposição a poluentes ao longo dos anos têm apresentado maior taxa de mortalidade[4].

A poluição do ar mata mais de 7 milhões de pessoas no mundo anualmente[5]. Mais de 169 mil mortes de crianças com menos de cinco anos estão ligadas a este fator, em decorrência das emissões de veículos, produção de energia a partir de combustíveis fósseis, incineração de resíduos[6] , queimadas e grilagem de terra[7] , o que impacta também perda fetal, partos precoces e menor peso ao nascer, além de gerar problemas de saúde graves, como respiratórios, cardiovasculares, cognitivo, dentre outros[8]. No Brasil, em 2016 apenas, foram mais de 44 mil mortes[9] . Ainda, a manutenção das florestas, em especial da floresta amazônica, é determinante para a vida e desenvolvimento do país pós-coronavírus por afetar diretamente a qualidade do ar nas cidades quando há queimadas, por assegurar as chuvas nas lavouras brasileiras e por ser ainda um ambiente pouco estudado e com inúmeras espécies animais e vegetais ainda por serem descobertas.

Os direitos fundamentais à vida, à saúde e a um meio ambiente equilibrado, assegurados constitucionalmente, não podem ser ignorados, devem ser garantidos desde a infância, com absoluta prioridade. Por isso, entidades que compõem a Coalizão RespirAr apresentam 6 pedidos públicos que podem mudar o cenário atual para uma retomada justa, com ar limpo e melhor qualidade de vida para nossa sociedade:

1. Retomada justa com veículos mais limpos: alinhar medidas para retomada econômica atreladas às questões ambientais e de saúde pública, com estímulo a utilização de energias
renováveis e de tecnologias mais limpas de combustíveis, mantendo e avançando no Programa de Controle de Poluição do Ar por Veículos Automotores – Proconve P-8, que já conta com
uma tecnologia mais limpa para ser implementada, e incentivando a eletrificação.

2. Transporte individual ativo para distanciamento social: incentivar ações de rápida implementação e baixo custo para o pedalar e caminhar, como intervenções de urbanismo tático, aumento do espaço dedicado ao pedestre e ampliação das infraestruturas destinadas à circulação e guarda de bicicletas como forma de garantir o distanciamento físico, resultando também em benefícios climáticos e sociais.

3. Garantia de transporte coletivo de qualidade: adotar medidas para que o transporte coletivo seja mantido durante e após a pandemia, com distanciamento entre usuários, limpeza e higiene adequados e recursos públicos transparentes, garantindo combustíveis e tecnologias limpas, bem como incentivando à sua priorização nas vias por meio de faixas exclusivas e corredores. Os contratos e regulamentações possuem um papel essencial para garantir a prestação dos serviços com qualidade e considerando a redução das emissões, neste sentido pode-se destacar a Lei 16.802/2018 do município de São Paulo que agregou ao contrato de concessão das frotas de ônibus metas para redução de poluentes e o incentivo à utilização de frotas limpas. Recomendamos que esta lei seja replicada em todas as capitais de Estado.

4. Desmatamento Zero e contenção de queimadas: de agosto de 2019 a abril de 2020, os alertas apontam para uma área desmatada de 5.483 Km². “Este é o maior índice dos últimos cinco anos e 99% maior do que o registrado no ano passado no mesmo”[10]. É preciso frear esse avanço pela aplicação de medidas de contenção e garantir o devido trabalho de fiscalização e gestão de órgãos como IBAMA, ICMBIO e FUNAI. Além disso, temos que garantir a não aprovação da MP 910 que impõe um risco real à degradação contínua da floresta. Degradação que afeta diretamente o ar que respiramos nas cidades e as lavouras brasileiras. Ou seja, a própria continuidade da vida.

5. Monitoramento e padrões de qualidade do ar atualizados: ampliar a rede de monitoramento de qualidade do ar, atualmente ineficiente, garantindo transparência e informação clara para a população e atualizar os padrões de acordo com os estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde como os mais seguros para a proteção da saúde. A legislação atual, especialmente a federal, que estabelece os parâmetros para atuação dos estados (Resolução Conama 491/2018), é falha e permissiva a ponto de permitir que as indústrias obtenham licença de funcionamento em locais que já contam com a bacia atmosférica saturada, além de não estabelecer prazos para que os estados atuem na melhoria da qualidade do ar. Por essas razões, foi inclusive objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.148, pela Procuradoria Geral da República, ação que aguarda julgamento no STF, sob a relatoria da Ministra Cármen Lúcia, a qual ressaltamos seu caráter urgente.

6. Urgência na aprovação da Política Nacional de Qualidade do Ar: retomar discussão, aprimorar e aprovar o Projeto de Lei 10.521/2018, em tramitação na Câmara dos Deputados, que cria a Política Nacional de Qualidade do Ar, marco regulatório fundamental para estabelecer os parâmetros e critérios nacionais para avançar nas políticas públicas e na gestão da qualidade do ar no Brasil.

Não existia e não passará a existir um “novo normal”. Esta crise é nova, mas a crise climática e da saúde pública é antiga, já sabida e extremamente urgente. Devemos construir um “novo agora”, com justiça climática, cidades mais resilientes, mobilidade mais sustentável, florestas em pé e uma população que possa respirar. É, assim, necessária uma retomada justa para a saúde planetária, que coloque a vida sempre em primeiro lugar.

COMPÕEM A COALIZÃO RESPIRAR:
BH em Ciclo
Bike Anjo
Ciclocidade
Cidadeapé
Cidade Ativa
Coalizão Clima e Mobilidade Ativa
Como Anda
Corrida Amiga
Desvelocidades
Engajamundo
Fundação Avina
Greenpeace Brasil
ICCT
Instituto Alana
Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor
Instituto de Energia e Meio Ambiente
Instituto Saúde e Sustentabilidade
ITDP Brasil
Mobilidade a Pé
Movimento Nossa BH
Nossa São Paulo
Observatório do Clima
Purpose
União de Ciclistas do Brasil – UCB

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Referências:
[1] Disponível em: https://blogs.iadb.org/brasil/pt-br/o-que-a-qualidade-do-ar-nos-diz-sobre-a-respostaao-coronavirus-no-brasil-e-na-regiao/
[2] SETTI, Leonardo et al. Is there a Plausible Role for Particulate Matter in the spreading of COVID-19 in Northern Italy. The BMJ, março 2020. Disponível em:  https://www.bmj.com/content/368/bmj.m1103/rr>. Acesso em 8 de maio de 2020.
[3] ZHU, Y., XIE, J., HUANG, F. & CAO, L. Association between short-term exposure to air pollution and COVID-19 infection: Evidence from China. Sci. Total Environ. 727, 138704, abril 2020. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/32315904>. Acesso em 8 de maio de 2020.
[4] WU, Xiao; NETHERY, Rachel C. et al. Exposure to air pollution and COVID-19 mortality in the United States: A nationwide cross-sectional study. Harvard University, abril 2020. Disponível em: <https://projects.iq.harvard.edu/covid-pm>. Acesso em 8 de maio de 2020.
[5] OMS. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/oms-poluicao-do-ar-provoca-morte-de-mais-de-7-milhoes-de-pessoas-por-ano/>
[6] OMS. Inheriting a sustainable world? Atlas on children’s health and the environment. 2017. Disponível em: apps.who.int/iris/bitstream/10665/254677/1/9789241511773-eng.pdf
[7] GREENPEACE. Não há acordo com a grilagem. Disponível em: https://www.greenpeace.org/brasil/blog/nao-ha-acordo-com-a-grilagem/
[8] UNICEF. Clear the air for children. Disponível em: https://www.unicef.org/publications/files/UNICEF_Clear_the_Air_for_Children_30_Oct_2016.pdf
[9] MS. Disponível em: https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/45500-mortes-devido-apoluicao-aumentam-14-em-dez-anos-no-brasil
[10] GREENPEACE: Disponível em: https://www.greenpeace.org/brasil/blog/desmatamento-emterras-indigenas-aumenta-64-nos-primeiros-meses-de-2020/