Mobilidade é questão de desenho urbano
02/05/2017 | por cidadeativa
*Texto publicado originalmente no Archdaily Brasil*
A crise da mobilidade urbana inspirou a reflexão sobre os modais de transporte e sua relação com eficiência, tempos de trajetos, poluição gerada, infraestrutura necessária, custos de implantação e operação e os impactos na saúde dos usuários. Atualmente, governos realizam grandes investimentos em novas infraestruturas que permitem que populações equivalentes a cidades inteiras se desloquem longas distâncias diariamente. Em São Paulo, por exemplo, o equivalente à população do Uruguai sai da Zona Leste para o Centro todos os dias.
No entanto, raramente discute-se sobre a forma da cidade, as distâncias a serem percorridas, o desenho das ruas: afinal, qual é o meio de deslocamento encorajado nas nossas cidades? Por que não há incentivos para adotarmos outros meios de locomoção? Será que a mobilidade nas cidades está somente relacionada à infraestrutura de transporte?
As ruas nasceram muito antes dos carros: eram destinadas à circulação de pedestres e veículos não motorizados. Após quase 100 anos da invenção dos automóveis e com grande parte da infraestrutura voltada a eles, os carros passaram de solução a problema e chegaram ao século 21 como os grandes vilões das cidades. A ênfase ao transporte individual motorizado resultou em uma crise de mobilidade urbana que afeta não apenas os tempos de deslocamento, mas também a saúde física e mental das pessoas, seja pelo estresse, sedentarismo, acidentes e mortes no trânsito ou, ainda, pela poluição e emissões atmosféricas gerada através da queima de combustíveis fósseis.
A dependência em relação aos veículos motorizados aumentou exponencialmente a partir das possibilidades urbanísticas que essa nova tecnologia trouxe: as cidades poderiam se expandir quase que indefinidamente em direção às periferias, para zonas distantes do trabalho, da escola, dos serviços. Ao mesmo tempo, o urbanismo moderno trouxe como paradigma a redução das densidades populacionais e a setorização dos usos da cidade. O resultado? Cidades espraiadas em vastos territórios que consomem zonas ambientalmente sensíveis, segregam populações e funções das cidades e criam zonas-dormitório e centros comerciais inóspitos e inseguros, principalmente durante a noite.
Como é possível construir sistemas de transporte público eficientes se as distâncias a serem percorridas são imensas, ou se deve ser preenchido um enorme território com uma malha coesa e interligada? Como caminhar até o trabalho que está a mais de 20km de distância? Como pedalar para a escola se as vias expressas, que permitem o fluxo rápido de carros e ônibus, inibem essa presença?
Mobilidade é, afinal, muito mais do que sistemas de transporte. Conseguir se locomover com facilidade nos centros urbanos também é questão de planejamento e forma urbana, é papel dos arquitetos e urbanistas. Para construir cidades mais caminháveis, inclusivas, saudáveis, democráticas, eficientes e ambientalmente responsáveis, algumas estratégias podem ser adotadas no desenho urbano dos nossos municípios:
+SISTEMAS INTEGRADOS: Ruas completas (do termo “complete streets”, em inglês) são aquelas que preveem infraestrutura para pedestres, bicicletas, transporte público e automóveis, priorizando a coexistência dos modais em uma mesma via com segurança. Além disso, a intermodalidade encoraja passageiros a combinarem modais distintos ao longo de um trajeto: permitir bicicletas em ônibus, por exemplo, incentiva trajetos ativos até as estações; incluir garagens nas estações de trem e metrô podem fazer com que um trajeto 100% realizado por um automóvel possa ser, em parte, realizado por transporte público.
+DESENHO DOS CAMINHOS: O desenho das ruas, a dimensão de calçadas, ciclovias ou faixas de tráfego, também influenciam diretamente na escolha por um modal. Qual o conforto ambiental ao caminhar em uma calçada de 1,50m ao longo de uma via expressa, em que as faixas largas incentivam o aumento de velocidade por parte dos automóveis? Como caminhar por um bairro em que as quadras são muito longas, as faixas de pedestre inexistentes ou muito distantes, e os tempos de travessia para pedestres muito curtos? Redesenhar a geometria das vias existentes a favor da acessibilidade e segurança viária, redescobrir potenciais atalhos como passagens e escadarias são primordiais para garantir que usuários possam optar por diferentes maneiras de se locomover.
+INFRAESTRUTURA COMPLEMENTAR: Toda infraestrutura de mobilidade deve vir acompanhada de outros elementos que complementem o papel de cada modal como, por exemplo, bicicletários e vestiários nos espaços de trabalho, ou ainda pontos de ônibus com informações sobre linhas e horários. As calçadas também podem ser projetadas de maneira a qualificar a experiência do pedestre, incorporando bancos para descanso, elementos de proteção (como toldos e marquises) para dias quentes ou chuvosos, sistemas de orientação ou informação para pedestres com sugestões de rotas e identificação de pontos de atração, ou iluminação orientada ao passeio na calçada à noite.
+CIDADES COMPACTAS: De onde viemos e para onde vamos? Uma cidade compacta tem maior densidade populacional (mais moradores em uma mesma área) e maior mistura dos usos do solo, o que permite acesso a diversos equipamentos como escola, supermercados e áreas de lazer em um espaço reduzido. A aproximação de destinos podem substituir longos deslocamentos por trajetos de curta distância no dia-a-dia, incentivando a mobilidade ativa. Além disso, investimentos em transporte público são otimizados, já que linhas de ônibus ou metrô podem ser mais curtas, reduzindo custos de implantação, manutenção e operação.
Enquanto continuarmos a (tentar) resolver os problemas de mobilidade urbana apenas com transporte, bairros permanecerão segregados e seus cidadãos continuarão sem o devido acesso aos serviços, comércio e lazer que têm direito. É necessário repensar a maneira atual de fazer cidades e torná-las mais humanas, inclusivas, agradáveis e seguras para todos seus habitantes, independentemente de sua capacidade de locomoção. Mobilidade é sim questão de planejamento e desenho urbano.