Esta cidade também é minha
21/12/2015 | por cidadeativa
*Texto originalmente publicado no site do SESC SP.
Com cada vez mais adeptos, mobilidade a pé reconecta as pessoas aos espaços urbanos e ajuda cada um a se sentir parte de uma comunidade
Do bairro do Bom retiro, na capital paulista, chega-se ao Brás, de onde é possível continuar até Barra Funda, Santa Cecília ou Pacaembu. Da Avenida Paulista, pode-se descer rumo à Aclimação e, na sequência, seguir até a Liberdade. Após tanto tempo com os carros protagonizando a mobilidade paulistana, tornou-se inusitado que trajetos como esses sejam feitos a pé. Recentemente, porém, trocar o transporte motorizado pelas próprias pernas tem sido a escolha de muitas pessoas que buscam uma forma de locomoção mais sustentável e próxima à vida urbana.
Acostumado a fazer os percursos descritos acima, o mestre em urbanismo e conselheiro de política urbana Mauro Calliari lembra que, apesar de uma parcela da população sempre ter caminhado por falta de outras opções de transporte, pessoas que até alguns anos atrás dependiam dos carros começam a se dar conta dos benefícios de andar a pé. “Até pouco tempo atrás, o carro estava associado a certo status. Hoje, por escolha, mais pessoas preferem fazer trajetos multimodais, utilizando a caminhada, a bicicleta, o transporte público”, observa, e aponta entre as razões para essa mudança um movimento mundial de reconexão com as cidades.
Um exemplo disso é que, nos Estados Unidos, um dos países onde a cultura dos carros é mais forte, apesar de ser possível tirar habilitação com 16 anos o número de jovens de até 19 anos que possuíam carteira de habilitação caiu de 64%, em 1998, para 46,3% em 2008, segundo a administração federal de transportes. No mesmo país, uma pesquisa feita em 2014 pela Rockefeller Foundation com 700 pessoas de 18 a 34 anos mostrou que três em cada quatro gostariam de viver em locais onde não precisassem de carro.
Em São Paulo, apesar de haver maior interesse na caminhada, priorizar a mobilidade a pé aliada ao uso de transporte público ainda não é uma tarefa fácil. A doutora em mobilidade não motorizada pela Universidade de São Paulo e presidente da Comissão Técnica Mobilidade a Pé e Acessibilidade da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), Meli Malatesta, avalia que a infraestrutura paulistana para os pedestres é baixa. “Nos bairros centrais, existem problemas localizados de calçadas, mas são lugares mais caminháveis. Já na periferia e em bairros que possuem uma via arterial sem canteiro central praticamente não há calçada e a situação é muito ruim.”
Na opinião de Meli, o pedestre ainda está longe de ser considerado protagonista na mobilidade urbana. Entre as questões mais urgentes, ela aponta a segurança, já que o maior número de mortes no trânsito paulistano, segundo a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), é o de pedestres. Em 2014, foram 555 atropelamentos fatais, número maior que o de acidentes resultantes em mortes de motociclistas (440), motoristas e passageiros de automóveis (207) e ciclistas (47).
Cidades para as pessoas
Além da necessidade de se garantirem trajetos seguros para quem caminha, a arquiteta, urbanista e cofundadora da organização não governamental Cidade Ativa, Gabriela Callejas, defende que é preciso pensar a mobilidade a partir de um sistema único e integrado. “É preciso parar de olhar os modais de forma segregada, afinal as pessoas podem escolher opções diferentes ao longo do dia, caminhando, pegando ônibus, depois metrô, bicicleta. Por isso, tudo deve estar conectado”, propõe. “Quando o assunto é mobilidade a pé, a gente tende a falar de acessibilidade, mas é mais do que isso. A infraestrutura do pedestre é bem complexa. Não é só calçada. Depende de travessias, conexões com transporte público e uma série de elementos que contribuem para criar uma experiência que de fato incentive o pedestre a caminhar.”
Gabriela avalia que São Paulo não se compara a cidades que são referência em mobilidade a pé, como Madri, Copenhague, Nova York e Bogotá, mas percebe ações positivas, como a proposta do Plano Diretor Estratégico de se adotarem fachadas ativas, incentivando o uso não residencial e com acesso aberto à população no térreo dos prédios. Há ainda iniciativas da população para impulsionar o transporte a pé, como o projeto Olha o Degrau, para restaurar, pintar e melhorar as escadarias da cidade, ou o Carona a Pé, que estimula alunos de uma escola a caminharem no trajeto entre suas casas e o local das aulas.
Criadora do Carona a Pé, a professora do ensino fundamental Carolina Padilha teve a ideia no ano passado, quando percebeu que encontrava muitos alunos no caminho entre a sua casa e a escola onde trabalha, no bairro de Santa Cecília. Ela propôs, então, que o trajeto fosse realizado em conjunto. “Várias famílias aderiram e alguns deixaram de ir de carro e de van para ir a pé. Hoje participam mais de 50 crianças e temos cinco rotas acompanhadas por adultos que se revezam”, conta Carol. “O senhor que trabalha no açougue vem nos cumprimentar todos os dias, o da banca também, então essas crianças estão sendo parte de uma comunidade. Isso traz um empoderamento, um jeito diferente de estar na cidade.”
Iniciativas desse tipo, observa Meli, mostram que começa a haver um ativismo a pé na cidade. “Tornar a cidade ‘caminhável’ é tornar a cidade segura, amigável, saudável. A partir do instante em que você estimula a mobilidade a pé, você instiga as relações sociais e traz uma conexão mais direta com os espaços públicos, o que vai exigir que esses lugares sejam cuidados e valorizados”, afirma. “O resultado é que cidades mais voltadas a pedestres são cidades mais humanas, feitas para as pessoas.”
*Texto originalmente publicado no site do SESC SP.